Aquela dualidade: arte x indústria
Especulações Cinematográficas, de Quentin Tarantino, e O Estúdio, de Seth Rogen
Arte e indústria são duas palavras que soam antagônicas e, ao mesmo tempo, estão constantemente dividindo espaço no vocabulário das pessoas. É uma relação paradoxal. Ao longo da vida e na academia, refleti sobre esse debate a partir de diferentes prismas. Entendi melhor como essa discussão se dá no cinema nas conversas que tínhamos no Clube do Crítico, orquestrado pelo sempre instrutivo Márcio Sallem, do Cinema com Crítica, e compreendi como o conflito também permeia o jornalismo a partir das ideias de Theodor Adorno e Walter Benjamin, nas aulas de Teorias da Comunicação, na faculdade.
Neste último mês, duas obras me desafiaram novamente a questionar esse assunto: o livro Especulações Cinematográficas, escrito por Quentin Tarantino, e a série de comédia O Estúdio, criada e estrelada por Seth Rogen.
Especulando cinema com Tarantino
Em Especulações Cinematográficas, Quentin Tarantino (aquele por trás de alguns dos filmes mais marcantes das últimas décadas, como Pulp Fiction, Bastardos Inglórios, Django Livre e Era uma Vez em... Hollywood, sabe?) escreve uma longa carta de amor à sétima arte, analisando obras do cinema norte-americano da década de 1970 que foram fundamentais para sua identidade — como cinéfilo e, posteriormente, como cineasta. Em sua estreia como autor de não ficção, ele detalha memórias afetivas de frequentar salas de cinema e espiar o mundo dos adultos, na maioria das vezes acompanhado da mãe e do padrasto, e revela como surgiu seu fascínio pela violência — uma característica marcante de sua autoralidade como realizador.
Mais do que isso, Especulações Cinematográficas, lançado em dezembro de 2023, revela como Hollywood funciona por dentro, com relatos dos bastidores de clássicos como Taxi Driver e observações sobre como a crítica de cinema estadunidense molda a indústria. É possível compreender o “jogo” dos estúdios, roteiristas, atores e diretores para equilibrar o sucesso comercial com a realização pessoal. Esse foi o aspecto que mais me chamou a atenção: ler como grandes filmes poderiam ter sido completamente diferentes sem a interferência dos estúdios ou o ego transtornado de certos artistas, e observar as concessões que precisaram ser feitas para imprimir sua identidade e, ao mesmo tempo, atender às demandas do público.
Manifesto egoico e autocrítico em Hollywood
Se você está assistindo O Estúdio, lançamento com episódios semanais na plataforma de streaming da Apple, nem preciso dizer o quanto as duas narrativas se conectam. Na série criada por Seth Rogen, acompanhamos Matt Remick, um devoto da cinefilia recém-nomeado chefe do Continental Studios, que acredita ser possível fazer filmes artisticamente primorosos e, ao mesmo tempo, com bilheterias astronômicas. Ou seja, ele acredita em uma grande ilusão — ou será que não?
O Estúdio explora a metalinguagem com maestria, apresentando uma Hollywood que faz referências, exaltações e críticas a si mesma, com participações especiais de estrelas como Martin Scorsese, Charlize Theron, Ron Howard, Sarah Polley e Greta Lee, interpretando versões satíricas de si mesmas. Em breve farei uma lista com as melhores séries de 2025 até agora, e essa definitivamente estará lá. Os episódios ainda estão sendo lançados semanalmente e valem cada segundo do seu tempo.
Mais uma vez, O Estúdio nos coloca diante da tensão entre arte e indústria, com todas as facetas problemáticas e inevitáveis dessa mistura heterogênea. Matt deseja fazer filmes que mudem o mundo da cinefilia como o conhecemos: projetos independentes, obras que deixem um legado para as próximas décadas — um La La Land, um Barbie ou, quem sabe, um Pantera Negra — filmes que sejam sucesso de público e crítica, que levem pessoas às salas de cinema e conquistem prêmios como o Oscar.
Teoria crítica com a Escola de Frankfurt
Dá para relacionar esses dois exemplos à dualidade entre arte e indústria a partir de teóricos da Escola de Frankfurt, como Theodor Adorno e Max Horkheimer, que falam sobre a indústria cultural e como ela transforma cultura em mercadoria. Nesse processo, a arte perde sua autonomia e se torna um produto padronizado, previsível e objetificado pelo lucro. Aos poucos, os indivíduos inseridos na indústria cultural também perdem sua originalidade e complexidade, sendo reduzidos a consumidores passivos da massa. Tarantino, nesse contexto, precisou resistir para não se tornar apenas mais uma peça na máquina hollywoodiana de fabricar blockbusters e franquias escravizadas por números e algoritmos.
Walter Benjamin complementa essas críticas em A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica, em que defende o papel emancipador da reprodução técnica, mas alerta sobre o comprometimento da aura da arte nesse processo. O cinema é um exemplo claro: uma arte feita para as massas, que flerta constantemente com a linha tênue entre expressão e espetáculo. O Estúdio, nesse sentido, traz o dilema de um protagonista que se torna parte da própria máquina — um executivo movido pelo lucro, que corrompe cada vez mais seu propósito original para atender às expectativas. Na série, fica claro o desconforto de um personagem egoico que quer agradar as estrelas, mas frequentemente precisa arrancar delas o controle criativo e pasteurizar suas ideias.
Mesmo após anos de argumentos e contra-argumentos, não dá para chegar a uma conclusão definitiva. Afinal, os meios de produção e consumo estão sempre mudando (basta pensar no desenvolvimento da inteligência artificial ou nas tendências de consumo verticalizado nas redes sociais). Depende também de como encaramos essas transformações: como um cabo de guerra (em que o mercado e a massa vencem pela quantidade), ou como uma ciranda, em que todos dançam na mesma direção com passos diferentes, tentando expressar sua individualidade enquanto harmonizam seu ritmo com o do outro.
Particularmente, procuro estudar mais sobre como isso afeta minha área — o jornalismo e a crítica de cinema — para compreender a melhor forma de me posicionar. Assim como o cinema, a comunicação desde sempre enfrenta o dilema de informar e expandir o conhecimento do espectador enquanto atende às expectativas da audiência. É o desafio de fazer jornalismo independente, enfrentando precariedade financeira e barreiras de alcance, ou jornalismo de massa, exercendo a profissão em função de métricas, renunciando à liberdade editorial e perseguindo o viralismo.
Em suma, tanto Especulações Cinematográficas quanto O Estúdio revelam esse jogo: a tentativa constante de criar algo pessoal, criativo e honesto dentro de sistemas que priorizam lucro, escala e audiência. O mesmo vale para o jornalismo. A saída, talvez, não seja romper com a indústria, mas reocupar seus espaços de forma crítica. Encontrar frestas.
Já viajamos bastante na maionese por hoje, né? rs
Espero que a reflexão tenha feito sentido para você tanto quanto fez para mim e gostaria de te ouvir também e estabelecer um diálogo. Por que não?
Até a próxima Jean’s Letter!